terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Não dá para sentir vergonha?

Confesso que fiquei surpreso com o pronunciamento do general José Elito Siqueira, o novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional.

Referindo-se ao regime de 64, o general disse: “Nós temos que ver o 31 de março de 1964 como dado histórico de nação, seja com prós e contras, mas como dado histórico. Da mesma forma, os desaparecidos são história da nação, que não temos que nos envergonhar ou nos vangloriar”.

O general fez este pronunciamento em seu discurso de posse.

Aparentemente, foi uma resposta ao discurso da ministra Maria do Rosário. Empossada na Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário pediu apoio a Comissão da Verdade, um projeto do governo Lula destinado a investigar o destino dos desaparecidos no porão do regime militar. A ministra argumentou: “O Estado brasileiro tem que resgatar sua dignidade em relação aos mortos e desaparecidos na ditadura.”

Na opinião do general José Elito Siqueira, não há o que resgatar porque “não temos que nos envergonhar ou nos vangloriar.”

Claro que há muitas questões liturgicas aí. Uma ministra disse uma coisa. Outro ministro, por acaso general, diz outra. Qual a opinião do governo a respeito?

Mas há outras implicações. Na posse, Dilma Rousseff não falou em vergonha. Se fosse para empregar a linguagem do chefe do Gabinete de Segurança Institucional, seria possível dizer que a presidenta vangloriou-se da luta armada. Dilma disse que os militantes que morreram em conflitos armados com o regime “pagaram o preço da ousadia…”

Com seu pronunciamento (“nem envergonhar-se, nem vangloriar-se”), general também pretendeu corrigir a presidenta dando a impressão de que só encarava a ministra?

Outra questão é de divisão de trabalho. Como ministra dos Direitos Humanos, entendo que Maria do Rosário é a pessoa qualificada para falar sobre o assunto. Acho que isso tem a ver com a divisão de trabalho dentro de todo governo. O minisro de Economia fala de Economia, o da Pesca fala sobre os peixes e crustáceos, o da Saúde fala sobre o SUS.

Por que um general fala sobre os desaparecidos? Todo mundo acha normal mas eu acho estranho. Para mim, isso tem a ver com nosso passado. A cultura de nossos militares parece considerar que eles tem direitos exclusivos sobre a memória do regime de 64. É como se tivessem a última palavra do que se pode dizer, escrever e saber sobre aqueles tempos. Não dá para condenar. De certo modo, é assim que nos encontramos, 25 anos depois da posse do primeiro presidente civil em Brasilia. Eles controlam os arquivos, que são a chave de nossa memória.

Mas há outra questão, também. Há muitos anos o país discute o que fazer com o passado oculto do regime de 64. Com sua manifestação, o general deu um novo passo — na direção errada.

Os desaparecidos políticos foram vítimas de um crime que contraria a disciplina militar e os estatutos das Forças Armadas, que jamais autorizaram a execução sumária de adversários de um governo — militar ou civil — nem o ocultamento de seus cadáveres, crime gravíssimo em qualquer legislação.

Vamos deixar de lado, para efeito de raciocínio, que o regime militar derrubou um presidente civil, com um mandato legal a cumprir. Vamos esquecer, também, que os novos governantes mudaram as regras do processo político, cancelaram eleições diretas, cassaram mandatos de políticos civis, proibiram partidos, censuraram a imprensa e assim por diante. Vamos até admitir que, mesmo tendo feito tudo isso, os governantes se considerassem no direito de perseguir e enfrentar oposicionistas que resolveram enfrentá-los de várias formas, inclusive de armas na mão. Havia uma guerra fria, e esse pano de fundo confundiu muitas mentes e gerou idéias erroneas em outras.

Até aí, estamos naquilo que o general chama de “dados históricos.”

Mas não dá para aceitar a etapa seguinte. Desaparecidos não são guerrilheiros nem assaltantes de banco nem sequestradores de embaixador.

São apenas cadáveres de homens e mulheres que morreram em confronto com as forças de segurança e foram enterrados sem identificação adequada.

Muitos foram executados de modo covarde, já desarmados, incapazes de reagir. No Araguaia, dava-se tiros na nuca. Nas grandes cidades, os casos frequentes eram de massacre sob tortura.

Em qualquer caso, são brasileiros cujas famílias não tiveram direito a um último instante de dignidade — quando a pessoa, já falecida, é velada por parentes e amigos, num ritual que há milhares de anos distingue a civilização humana de outros seres vivos.

A identidade dessas pessoas foi falsificada, para impedir que fossem localizadas. Procuradas pelas famílias, autoridades envolvidas fabricavam versões estapafurdias sobre o paradeiro de suas vítimas, com a única finalidade de encobrir suas responsabilidades. Oficiais com a farda coberta de insígnias chegam a dizer que nunca ouviram falar do que ocorria nos porões, dizem duvidar dos relatos de tortura, de execuções.

Isso não é coisa do passado. Acontece hoje, aqui e agora. É falta de respeito com viuvas, filhos, netos. Ou falta de dignidade, como disse uma ministra conhecida pelo jeito brabo apesar do rosto de boneca.

Não dá para sentir vergonha?

Eu sinto. E você?

Nenhum comentário: