Hoje me encontrei com o tempo. Por obra da insônia, eu estava sentado
à minha janela me aventurando em alguns versos e leituras, enquanto
observava a imensa madrugada que se derramava sobre a cidade lá fora e
se aproximando de seu fim.
O tempo entrou em minha casa, foi até meu quarto e pôs suas ásperas
mãos de ancião sobre os meus ombros. Não se apresentou pelo nome em
nenhum momento, mas o
reconheci imediatamente. O identifiquei pelo olhos sóbrios que estampava
no rosto, carregando um olhar fugaz, solitário e desgastado pelo tédio
da eternidade. O olhar sisudo de quem tudo vê, através da essência de
todas as coisas. Era taciturno, falava mais através de gestos
melancólicos do que por palavras, mas sua voz tinha algo de grave,
vibrante, e ao mesmo tempo era tão diferente de tudo que eu havia ouvido
antes que frustrava todos minhas tentativas em definir uma comparação
apropriada: primeiro me parecia o ruído de um tropel descontrolado,
depois não me restava dúvidas que assemelhava-se ao estrondo seco e
repentino de um trovejar, para em seguida contentar-me com o tamborilar
da chuva nos telhados, antes de mudar novamente de ideia. Trazia,
entretando, em suas poucas palavras, os mesmos lamentos inconsoláveis e
vaticínios
incompreensíveis dos profetas esquecidos. Não tive dúvidas, só podia ser
o tempo.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele
apontou para fora da janela, instando-me a olhar através dela.
Apreensivo, olhei. Avistei um menino descalço, na rua, tentando com um
graveto escrever qualquer coisa num chão de terra batida. Percebi não
tratar-se do tempo presente ao ver que o menino observava, detidamente,
as nuvens de uma ensolarada e sufocante tarde. Buscando nelas, pensei, a
repetição de padrões conhecidos aqui embaixo, quer fossem
árvores, meros animaizinhos ou mesmo formas e mosaicos imprecisos vistos
em nenhum outro lugar que não fosse em seus sonhos de criança. Ele
sonhava conhecer o que havia por trás das nuvens, imaginava um mundo
novo e feliz situado além delas.
Vi, depois, o garoto
espreitando a chuva em sua janela, uma pavorosa chuva vespertina que
desorientava os pássaros, encharcava as ruas e golpeava o ar em rodopios
frenéticos. Observava a chuva atentamente, procurando ouvir os
murmúrios daqueles ventos que sibilavam lá fora, tão melancolicamente.
Tudo aquilo o inquietava, e tornava-o determinado em descobrir a razão
de ser daquele temporal
alucinado e compreender o seu destino irrevogável consumado naquelas
pesadas nuvens lá do alto.
Em seguida, vi o menino lançando o
mesmo olhar interrogativo sobre o céu noturno e seu inventário colossal
de
estrelas. Olhava com uma admiração quase reverencial, enquanto formulava
para
si mesmo conjecturas fantasiosas a respeito do céu, da lua e das
estrelas. Aventurava-se nas mais inverossímeis especulações sobre a
imensidão daquele céu que não acabava nunca, para onde quer que ele
olhasse. Naquele momento, ele quis ser astronauta. Desejou conhecer os
intrincados mistérios do céu, ouvir histórias surpreendentes sobre a lua
e conhecer as estrelas pelo nome.
Depois,
surpreendi-me ao ver subitamente o menino já adulto, trazendo não
apenas um olhar cansado no rosto, como todas as marcas do inflexível
transcurso dos anos. Notei que todas as dúvidas que motivavam aquelas
perguntas do garoto sobre as nuvens, a chuva e a noite ajudaram a forjar o homem que ele veio a ser, das mais diversas formas.
Tornou-se desconfiado dos deuses, avesso ao dogmatismo das religiões e
sua incansável cruzada contra a dúvida, profundamente impressionado pela estética da
noite e sua poesia imortal, sempre dedicado à compreensão da harmonia do
funcionamento do universo e, ademais, vi um homem adepto do sonho de um
mundo novo, melhor e mais feliz para todos os seres humanos. Talvez o
mesmo mundo quimérico com o qual ele sonhava, quando criança, e que acreditava existir por trás das nuvens.
A
conexão tão
estreita entre as tais coisas passadas e as presentes da vida daquele
homem, reveladas por aquele intrépido ancião que ainda estava ali ao meu
lado, me deixou assombrado. Estava tão distraído pela revelação
daquelas últimas horas que custei a perceber que ele chamava pelo meu
nome, apontando novamente em direção à janela e insistindo para que eu
tornasse a olhar por ela. Olhei. Vi as incipientes luzes do alvorecer
desatando dos obstáculos do horizonte um sol impávido, esplendoroso, a
prevalecer sobre as densas trevas da madrugada. Compreendi com uma
nitidez cristalina o que ali se anunciava: eram os meus trinta anos,
lúcidos e radiantes, chegando com a sexta-feira, pensei eu. Sim, eram os
meus trinta anos
com seu arsenal de utopias e esperanças insepultas, arrastando seus
passos hesitantes pela luz tíbia de um dia em flor que brotava das
entranhas do firmamento, ali, de onde costuma ser tão imprecisa e inútil
a
distinção entre a luz e as trevas, entre o dia e a noite, entre o tudo e
o nada. Eram os meus trinta anos dobrando a
esquina da vida e alçando voo com asas que pareciam de albatroz, me
trazendo a memória dos meus ancestrais, todos os seus sonhos perdidos e
seus
presságios ocultos para que eu os decifrasse. Impressionado ao ver que
meus trinta anos tinham uma forma e que se
aproximavam, quis tocá-los, segurá-los, mas era tão inútil quanto se
quisesse reter o vento entre os punhos, pois eram fugidios e já iam
longe e apressados. A essa altura, entretanto, o velho tempo já
observava tudo de longe, do outro lado da rua, e esboçando um tímido e
irônico sorriso.