sexta-feira, 6 de junho de 2014

Os meus trinta anos

Hoje me encontrei com o tempo. Por obra da insônia, eu estava sentado à minha janela me aventurando em alguns versos e leituras, enquanto observava a imensa madrugada que se derramava sobre a cidade lá fora e se aproximando de seu fim. O tempo entrou em minha casa, foi até meu quarto e pôs suas ásperas mãos de ancião sobre os meus ombros. Não se apresentou pelo nome em nenhum momento, mas o reconheci imediatamente. O identifiquei pelo olhos sóbrios que estampava no rosto, carregando um olhar fugaz, solitário e desgastado pelo tédio da eternidade. O olhar sisudo de quem tudo vê, através da essência de todas as coisas. Era taciturno, falava mais através de gestos melancólicos do que por palavras, mas sua voz tinha algo de grave, vibrante, e ao mesmo tempo era tão diferente de tudo que eu havia ouvido antes que frustrava todos minhas tentativas em definir uma comparação apropriada: primeiro me parecia o ruído de um tropel descontrolado, depois não me restava dúvidas que assemelhava-se ao estrondo seco e repentino de um trovejar, para em seguida contentar-me com o tamborilar da chuva nos telhados, antes de mudar novamente de ideia. Trazia, entretando, em suas poucas palavras, os mesmos lamentos inconsoláveis e vaticínios incompreensíveis dos profetas esquecidos. Não tive dúvidas, só podia ser o tempo.

 Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele apontou para fora da janela, instando-me a olhar através dela. Apreensivo, olhei. Avistei um menino descalço, na rua, tentando com um graveto escrever qualquer coisa num chão de terra batida. Percebi não tratar-se do tempo presente ao ver que o menino observava, detidamente, as nuvens de uma ensolarada e sufocante tarde. Buscando nelas, pensei, a repetição de padrões conhecidos aqui embaixo, quer fossem árvores, meros animaizinhos ou mesmo formas e mosaicos imprecisos vistos em nenhum outro lugar que não fosse em seus sonhos de criança. Ele sonhava conhecer o que havia por trás das nuvens, imaginava um mundo novo e feliz situado além delas.

Vi, depois, o garoto espreitando a chuva em sua janela, uma pavorosa chuva vespertina que desorientava os pássaros, encharcava as ruas e golpeava o ar em rodopios frenéticos. Observava a chuva atentamente, procurando ouvir os murmúrios daqueles ventos que sibilavam lá fora, tão melancolicamente. Tudo aquilo o inquietava, e tornava-o determinado em descobrir a razão de ser daquele temporal alucinado e compreender o seu destino irrevogável consumado naquelas pesadas nuvens lá do alto.

Em seguida, vi o menino lançando o mesmo olhar interrogativo sobre o céu noturno e seu inventário colossal de estrelas. Olhava com uma admiração quase reverencial, enquanto formulava para si mesmo conjecturas fantasiosas a respeito do céu, da lua e das estrelas. Aventurava-se nas mais inverossímeis especulações sobre a imensidão daquele céu que não acabava nunca, para onde quer que ele olhasse. Naquele momento, ele quis ser astronauta. Desejou conhecer os intrincados mistérios do céu, ouvir histórias surpreendentes sobre a lua e conhecer as estrelas pelo nome.

Depois, surpreendi-me ao ver subitamente o menino já adulto, trazendo não apenas um olhar cansado no rosto, como todas as marcas do inflexível transcurso dos anos. Notei que todas as dúvidas que motivavam aquelas perguntas do garoto sobre as nuvens, a chuva e a noite ajudaram a forjar o homem que ele veio a ser, das mais diversas formas. Tornou-se desconfiado dos deuses, avesso ao dogmatismo das religiões e sua incansável cruzada contra a dúvida, profundamente impressionado pela estética da noite e sua poesia imortal, sempre dedicado à compreensão da harmonia do funcionamento do universo e, ademais, vi um homem adepto do sonho de um mundo novo, melhor e mais feliz para todos os seres humanos. Talvez o mesmo mundo quimérico com o qual ele sonhava, quando criança, e que acreditava existir por trás das nuvens.

A conexão tão estreita entre as tais coisas passadas e as presentes da vida daquele homem, reveladas por aquele intrépido ancião que ainda estava ali ao meu lado, me deixou assombrado. Estava tão distraído pela revelação daquelas últimas horas que custei a perceber que ele chamava pelo meu nome, apontando novamente em direção à janela e insistindo para que eu tornasse a olhar por ela. Olhei. Vi as incipientes luzes do alvorecer desatando dos obstáculos do horizonte um sol impávido, esplendoroso, a prevalecer sobre as densas trevas da madrugada. Compreendi com uma nitidez cristalina o que ali se anunciava: eram os meus trinta anos, lúcidos e radiantes, chegando com a sexta-feira, pensei eu. Sim, eram os meus trinta anos com seu arsenal de utopias e esperanças insepultas, arrastando seus passos hesitantes pela luz tíbia de um dia em flor que brotava das entranhas do firmamento, ali, de onde costuma ser tão imprecisa e inútil a distinção entre a luz e as trevas, entre o dia e a noite, entre o tudo e o nada. Eram os meus trinta anos dobrando a esquina da vida e alçando voo com asas que pareciam de albatroz, me trazendo a memória dos meus ancestrais, todos os seus sonhos perdidos e seus presságios ocultos para que eu os decifrasse. Impressionado ao ver que meus trinta anos tinham uma forma e que se aproximavam, quis tocá-los, segurá-los, mas era tão inútil quanto se quisesse reter o vento entre os punhos, pois eram fugidios e já iam longe e apressados. A essa altura, entretanto, o velho tempo já observava tudo de longe, do outro lado da rua, e esboçando um tímido e irônico sorriso.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Vietnã e o Nobel de Kissinger

Há 41 anos o exército dos EUA era derrotado no Vietnã. Mesmo vencidos e obrigados a se retirarem daquele país não deixaram barato, é claro, e como temos testemunhado estarrecidos nos últimos 60 anos, honraram ali sua detestável tradição de invadir saquear e arruinar países inteiros em nome da "liberdade e democracia" , como ainda vêm fazendo por aí (Iraque, Afeganistão, Líbia etc que o digam) e, pior que isso, eventualmente faturando um prêmio nobel da paz em meio a barbárie praticada.
Conseguiram! O laureado da ocasião foi o canalha do Henry Kissinger, então secretário de Estado do governo Nixon, por negociar o fim daquela insanidade criada por eles mesmos, num momento em que estouravam protestos nos EUA pelo fim da guerra. Isso mesmo, o cara ganhou um nobel da paz por sair do vespeiro que eles mesmos produziram! Não são engraçados demais esses donos do mundo? O líder vietnamita Lê Đức Thọ que encabeçava as negociações do lado de lá, não aceitou participar do circo de hipocrisia do comitê nobel e recusou o prêmio que receberia na desagradável companhia de Kissinger. Obrigado, Lê Đức Thọ! O senhor nos mostrou que a dignidade que andava por aí tão combalida e trôpega ainda não havia morrido e poderia, sim, um dia ser restabelecida.

Ironicamente, poucos trabalharam de forma tão árdua e diligente contra a paz na nossa América Latina quanto esse cidadão chamado Henry Kissinger. Um dos grandes serviços prestados por ele contra a paz em nossa região, no mesmo ano em que recebeu o maldito prêmio, foi a meticulosa articulação do sangrento golpe militar no Chile, após haver dito um dos maiores impropérios de lesa-dignidade que se ouviu nesse nosso subcontinente tão sofrido, e que me faz por um momento desejar que o inferno realmente exista: "Eu não vejo porque nós precisamos nos estancar e olhar um país se tornar comunista devido à irresponsabilidade de seu próprio povo". A "irresponsabilidade" dos chilenos ao qual ele se referia era o imperdoável  atrevimento de haverem eleito democraticamente o presidente socialista Salvador Allende. Qual foi a solução de Kissinger para o terrível impasse de um povo escolher soberanamente seu mandatário? Pôr em seu lugar um dos homens mais sanguinários que o século XX produziu (e olha que não foram poucos!), de nome Augusto Pinochet. Fato que inaugurou naquele país um período de trevas e atrocidades inomináveis. Isso se deu naquele fatídico 11 de setembro de 1973, o dia em que o presidente eleito pelo povo foi morto, entrincheirado em seu palácio presidencial, sob o férreo cerco de golpistas ensandecidos que realizavam ali o secreto e desumano sonho de um homem que, meses depois, seria laureado com o prêmio nobel da paz.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O poema não escrito

Eu quis escrever um poema
da solidão de minha alcova, 
naquela noite fria.
Tomei a pena da galhofa 
e a tinta da melancolia.
E me pus a pensar em trovas, 
me pus a pensar em versos,
em sonetos, rimas, estrofes 
e em alguns temas controversos.
Em tudo que me faria, 
naquela noite vadia,
confessar em um poema 
os meus dilemas diversos.  

Eu quis escrever um poema
que iludisse minha tristeza
naquela noite solitária,
que tivesse a sutileza 
de uma brisa temporária.
Tanto quanto a fortaleza 
de uma prosa libertária.
Um poema visionário, 
que fizesse ser ouvido
o meu grito temerário
em tantos versos reprimido,
versos nunca declamados, 
em sussurros proferidos,
em segredo assim guardados 
ou lançados ao infinito.

Eu quis escrever um poema,
meu poema nasceria
da ponta da minha pena
naqueles dias de agonia.
Não tinha certeza plena
para quem eu escreveria,
que bandeira, causa ou emblema,
meu poema encamparia.
Escreveria por vingança?
Escreveria por cansaço?
Por um arroubo de esperança
a consolar nosso fracasso?
Talvez à guisa de protesto,
tantas vezes necessário,
assim o poema seria escrito
como um gesto solidário.
Como um fugidio grito
do meu peito libertário.

Me inspirava na noite dali
para domar os versos esquivos
que queriam de mim fugir.
  
Mas a noite queria partir
e perder-se nas cores vivas
da aurora que eu via florir.

E assim diante de mim,
frustravam-se as tentativas
do meu poema surgir. 
  
Pois a noite se foi de repente,
sumindo no céu infinito,
deixando para mim simplesmente
um poema não escrito.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Pensando em ti

Penso em ti, não posso evitar. 

Não posso negar aos meus ouvidos 
o prazer desmesurado de encontrar tua voz 
nos sons do alvorecer e de reconhecer o teu cantar 
nas melancólicas cantigas dos pássaros errantes.

Não consigo evitar que os meus olhos 
sejam iludidos pelas tantas miragens
em que te vejo na chuva, banhando-te livre, 
feliz e reverenciada pelo céu relampejante.

Nem mesmo escapar da ilusão inebriante
de sentir teus abraços na força dos ventos ríspidos 
que desnudam as goiabeiras.

Não posso impedir que meus sonhos 

corram alucinados ao encontro dos teus 
e que os persigam pelos ardilosos caminhos 
deste desejo desvairado de verter 
em meus próprios olhos cada lágrima tua.

Nem controlar esta força descomunal 
que insiste em calar o pranto dos meus infortúnios 
na exuberância apaixonante dos teus sorrisos.

Penso em ti, sozinho e olhando a noite.

Sonho com teus beijos ao amanhecer, 
com teus lábios silenciando os meus 
enquanto inoculam em meu peito 
o vírus deste estremecer perturbador,
que me faz confundir tuas carícias 
com os promissores anúncios da primavera.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Vim, vi e escrevi


Vim, vi e parei
Diante dos versos que não vieram,
Perdidos nas noites que varei,
Errantes na chuva não souberam,
Que por eles prostrado esperei.

Vim, vi e lembrei
Dos sonhos possíveis, inacabados
Das lutas inglórias que travei,
Dos amores perdidos, desvairados,
Que em meu peito exaltado carreguei.

Vim, vi e falei
Da minha vida inquieta e peregrina,
Dos caminhos incertos em que andei,
Das virtudes notáveis da menina,
Que com saudades naquele dia deixei.

Vim, vi e chorei,
Chorei do meu jeito assim calado,
Nem mesmo uma lágrima derramei,
Mantive o meu pranto sufocado,
E em nome da saudade o guardei.

Vim, vi e senti
A chegada oportuna destes versos,
Numa noite de insônia os persegui
Por caminhos confusos e diversos,
Solitário e em silêncio os escrevi.



sábado, 23 de novembro de 2013

O mar que ficou

O mar entrou na minha vida,
Trazendo ao que antes só era rio
O sobressalto de suas impetuosas vagas,
A taciturna nostalgia dos marinheiros,
A amargura de suas águas alucinadas.
Ofereceu-me os sinuosos caminhos da poesia,
Os incompreendidos sonhos dos desterrados,
E os horizontes imensos e distantes
Por onde meus olhos desamparados
Podem escapar e encontrar descanso.
Como dádiva por minha devoção, 
Prometeu fascinar-me com sua imensidão,
Com a maestria com que adorna a noite,
Com a sutileza com que reflete o luar,
Com a paciência com que espreita a chuva,
Com as ondas mansas que fico a contemplar.
Trouxe-me a expressão de um olhar vadio
E a vontade imensa de voltar
Ao tempo de quando só era rio,
Tudo o que agora só é mar.



quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Algumas questões para Yoani Sánchez

Yoani Sánchez com alguns ícones da "democracia" brasileira.

Indo um pouco na direção do que foi comentado aqui, também acho que em vez de ficarem fazendo esses protestos inúteis, que só contribuem para o endeusamento da Sra. Yoani Sánchez, sobretudo da forma grosseira como foram feitos, dando mais munição a esse democratismo de goela, cínico e hipócrita, encampado pela grande mídia, creio que uma outra estratégia mais sábia poderia ser adotada, no sentido de questionar essa moça, respeitosamente. Como fez, de forma muito inteligente, Salim Lamranium, naquela entrevista em que ela se contradisse, entre outras coisas, sobre a agressão que supostamente havia sofrido, alguns dias antes, mesmo sem apresentar um arranhão sequer ou qualquer outra prova disso.

Por exemplo, que tal convidá-la a um debate público, pode ser o mesmo o qual sugeriu o blogueiro do link acima, e lá exibir os dois vídeos abaixo (ao fim do texto), para fazê-la refletir um pouco e rever essa sua admiração comovente pela nossa "liberdade de expressão"?


Por que não mostrar as contradições desse nosso modelo de "democracia", que ele defende com tanta veemência? Por exemplo, por que não, educadamente, pedir a opinião dela sobre essas rádios comunitárias, chamadas de "piratas" pelos que detêm o monopólio da comunicação no Brasil, criminalizadas por esses grupos e por essa legislação monstruosa que, conforme é comentado no segundo vídeo, por mais absurdo que isso pareça, prevê aos que mantêm rádios não-regularizadas penas maiores do que "lesão corporal " e "cárcere privado"?

Que tal a blogueira tecer seus comentários a respeito disso? Por que não perguntá-la se ela acha mesmo que essa legislação, apoiada ferrenhamente pela máfia midiática das 11 famílias que controlam a comunicação no Brasil e por frações expressivas da classe política que detêm concessões públicas, é compatível com esse oásis de democracia e liberdade de expressão que ela acredita ser o nosso país?

Por que não perguntá-la se ela acha que esse mesmo país que, conforme apresentado também no segundo vídeo, em 5 anos, através de operações da PF, desmantelou quase 7000 rádios comunitárias, "não-legalizadas", para orgasmos múltiplos dos grandes grupos de comunicação em seus noticiários, pode dar alguma lição a alguém sobre democracia e liberdade de expressão?

Que tal contar a ela a história desses dois deficientes visuais, Roberto e Raimundo, que mantinham uma rádio comunitária, "não-legalizada", coordenada por deficientes visuais como eles, que exercendo o legítimo direito de se expressar e de falar aos seus pares, foram obrigados a fechar a rádio, tendo no desfecho a prisão domiciliar de Roberto por 2 anos? Que tal apresentá-la a esses dois brasileiros que, ao contrário dela, não recebem nenhuma bajulação, audiência, espaço, nos círculos midiáticos tradicionais mas, pelo contrário, são tratados como criminosos?

Aliás, não há nada mais abominável e nauseante do que passar a semana inteira ouvindo, lendo etc esses discursos hipócritas sobre liberdade de expressão, vindo desses grupos midiáticos que só pensam em seus interesses econômicos, engordaram às expensas da ditadura militar e lutam para que essa legislação infame permaneça como está, acusando de censura qualquer tentativa, tímida que seja, de reformá-la.

Outra coisa, para finalizar. Por que não levar a Sra. Yoani Sánchez àqueles lixões onde há famílias inteiras vivendo como ratos e disputando comida com eles, em condições desumanas, absolutamente impensáveis para um cubano, para que ela veja o quão excepcional é a nossa democracia capitalista, com internet rápida e carros modernos?

Abaixo os vídeos: